Em todo o mundo, a discussão sobre o aborto gira em torno do abortamento clandestino e da necessidade de uma nova regulamentação como forma de minimizar os seus efeitos. 

Na Europa, a viragem política ocorreu em 1967, em Inglaterra, com a Abortion Act. Mas o aborto já vinha sendo tolerado desde 1938, quando o médico Aleck Bourne foi absolvido por ter interrompido a gestação proveniente da violação sofrida por uma menor de 14 anos, de forma a salvar o seu equilíbrio mental. A trajetória do aborto na Europa segue mais ou menos uma tendência generalizada.

Nos Estados Unidos a liberalização do aborto ocorreu por volta de 1965. Em 1967, alguns Estados, entre os quais Colorado e Califórnia, previram a possibilidade da interrupção voluntária da gravidez em casos específicos, ficando a decisão final a cargo dos médicos e hospitais. Três anos depois, o Estado de New York permitiu o abortamento de gestação com menos de 24 semanas desde que realizada por médico em instalações clínicas. Isso provocou uma divisão entre os Estados, uns mais liberais que outros, levando a questão até o Supremo Tribunal Federal, que se manifestou através da célebre sentença Roe v. Wade.

O famoso caso norte-americano Roe v. Wade é um exemplo paradigmático do debate constitucional sobre o aborto e um marco histórico na luta pelos direitos reprodutivos das mulheres. Trata-se do pedido feito pela jovem de pseudónimo Jane Roe, mãe solteira à época grávida pela terceira vez e que já não tinha a custódia dos seus outros filhos face às suas condições sociais e económicas precárias. A sentença foi proferida em 1973, quando a criança já havia sido dada a adoção. 

Na sentença, a Suprema Corte declarou, por uma votação de sete a dois, que a legislação do Texas que criminalizava o aborto a não ser quando praticado para salvar a vida da mãe era inconstitucional. Mais, que nenhuma lei estadual pode, seja qual for o motivo, proibir o aborto até o terceiro mês de gravidez. E que também não pode proibi-lo do quarto ao sexto mês de gravidez, a não ser nos casos em que ponha em risco a saúde da mãe. Com efeito, os Estados só podem proibir o aborto por volta do momento em que o feto se torna viável, ou seja, a partir do sétimo mês de gestação.

Grande parte do debate concentrou-se na questão de saber se a Constituição americana assegura à mulher grávida o direito constitucional específico à privacidade em matéria de procriação e se esse direito inclui a liberdade de escolha a propósito do aborto. Teve por base a Décima Quarta Emenda à Constituição, que afirma a cláusula de igual proteção da lei ao determinar que o Estado deve tratar todas as pessoas como iguais, de modo que o centro da discussão foi decidir se o direito norte-americano considera o feto uma pessoa constitucional. Na sentença prevaleceu a ideia de que o feto não é uma pessoa constitucional. 

Muito resumidamente, o caso Roe v. Wade destaca-se pela discussão em torno da natureza jurídica do feto, isto é, se é ou não uma pessoa do ponto de vista constitucional. A decisão do Supremo foi no sentido de que, antes do nascimento, o feto não é uma pessoa no sentido explicitado pela Décima Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos e que, por essa razão, a mulher grávida tem o direito fundamental de controlar a sua capacidade de procriação.

Ao contrário da tendência mais ou menos seguida na Europa, cujas leis se baseiam no direito à saúde da mulher quando em conflito com os interesses objetivos do ser humano não nascido, nos Estados Unidos a temática é abordada sob uma perspetiva de direitos fundamentais, mais propriamente, privacidade, liberdade pessoal e autonomia da mulher grávida, uma pessoa constitucional, em contraposição ao feto não viável do ponto de vista do seu período de formação, ainda não considerado uma pessoa constitucional.

Passados 50 anos da jurisprudência com valor de precedente histórico, no passado dia 24 de junho de 2022 a Suprema Corte americana revogou a decisão Roe v. Wade, por entender que não existe um direito ao aborto consagrado constitucionalmente, cabendo assim, a cada Estado americano legislar sobre o assunto. Com efeito, a principal consequência da revogação de Roe v. Wade é que agora cada Estado tem total autonomia para decidir se proíbe, criminaliza ou autoriza o abortamento e em quais condições.

A revogação da decisão Roe v. Wade reacendeu o debate sobre o aborto no mundo, antevendo-se uma possível tendência moralista e conservadora que, à semelhança do que aconteceu na década de 70 mas em sentido contrário, repercutirá em outros países, implicando agora numa maior restrição dos direitos humanos das mulheres.

É o caso do Brasil, um dos países com legislação abortiva mais restritiva, sendo esta apontada como a principal razão para os elevados índices de mortalidade materna. O facto é que, mesmo nos pouquíssimos casos em que o aborto é permitido, os hospitais da rede pública negam-se a realizar o procedimento, tendo a gestante muitas vezes de recorrer aos tribunais para solicitar autorização em que pese a possibilidade legal, como, por exemplo, acontece às vítimas de crimes sexuais. Indiscutivelmente, essa tendência conservadora revela-se no recentíssimo caso da criança de 10 anos vítima de violência sexual, que ganhou notoriedade internacional por ter sido mantida compulsoriamente numa casa abrigo e persuadida pela Justiça do Estado de Santa Catarina a não abortar.

De sublinhar, que mesmo diante da proibição legal o abortamento continua a ser praticado na clandestinidade e de forma insegura ou a elevados custos. Logo, o ponto fulcral do problema reside em que a proibição controla particularmente os corpos de mulheres pobres e negras, com menor escolaridade e condições de vida mais desfavoráveis, aumentando ainda mais a desigualdade social. Nessas condições, é manifesto que o aborto não pode ser tratado como um crime, mas sim como um grave problema de saúde pública.

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