O abuso é identificado como uma das práticas mais violenta contra a integridade física e psíquica da criança e que pode afetar permanentemente o seu normal desenvolvimento.
As vítimas de crimes sexuais são invariavelmente vulneráveis, ainda mais quando crianças, carregando consigo um peculiar sentimento de culpa resultante da ideia de que fizeram algo reprovado ou mesmo da situação de dependência para com o agressor. O agressor também pode ser um menor, desde que mais velho ou que exerça alguma posição de ascendência sobre a outra criança.
Neste contexto de vulnerabilidade e dependência, o consentimento da criança é irrelevante, sendo comum acontecer abuso sexual sem abuso físico. Dir-se-á que a inexistência de qualquer reação ou resistência por parte de uma vítima de violência sexual radica no facto de sentir a agressão como um perigo para a sua vida, adotando um comportamento direcionado para a sua sobrevivência.
É o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa n.º 473/16.0JAPDL.L1, de 12/06/2019, Rel. Teresa Féria, que destaca a chamada imobilidade tónica da vítima desses crimes, cujo medo lhes impede a demonstração de qualquer reação, outras em que se opera uma dissociação da realidade como se a agressão não se passasse com elas e outras, ainda, que não oferecem resistência para evitar ferimentos ou morte.
Ora, quando se trata de crimes dessa natureza cometidos contra menores de 14 anos, dada a sua falta de maturidade física e psicológica, independentemente do seu entendimento ou consentimento, a violência é inerente e com toda a força é de se presumir.1
Acresce que a vítima menor deve colaborar para a investigação criminal e a descoberta da verdade, disponibilizando-se para a recolha de provas num processo por si só estigmatizador, o que potencializa os impactos psicológicos já sofridos e faz com que reviva os acontecimentos, experienciando uma segunda vitimização de dimensões tanto ou mais severas que a primeira.
Isto porque as vítimas de crimes sexuais sofrem estados de extrema ansiedade e de profunda crise emocional face ao medo, a vergonha e a humilhação que a publicidade pode acarretar, para além de todo o estigma do processo. Deste modo, o referido Acórdão afirma que não carece da produção de qualquer elemento de prova a indicação das consequências nefastas de uma violação para o desenvolvimento da personalidade de uma jovem.
É exatamente esse medo, humilhação e vergonha em tornar o caso público, somado a dificuldade de se reconhecer como vítima, que faz com que as vítimas de crimes dessa natureza não raras vezes levem anos até pedirem ajuda, ocasionando a prescrição desses crimes, quando então já não é possível recorrer à Justiça.
Por outro lado, apesar da violência, da dor e do calvário percorrido pela criança que passa por todo o processo de vitimização, a resposta da Justiça à sociedade deve ser compreendida como a de um sistema de justiça penal no qual efetivamente se pode confiar, afastando a ideia comum de impunidade ou de um sistema que parece legitimar as consequências tantas vezes mais favoráveis ao agressor do que à vítima.
De maneira que aumentar a idade da vítima para a prescrição dos crimes sexuais contra menores (atualmente o procedimento criminal não se extingue, por efeito da prescrição, até a vítima completar 23 anos), é uma medida salutar, necessária e que deve ser seriamente discutida.
[1] Nos termos do artigo 171.º, n.º 1, do CP: “Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.”
